21 de dezembro de 2011

Vivendo os festivais sagrados


Hoje, 21/12/11, comemoro o solstício de inverno, quando as chuvas ficam mais intensas, o clima quase sempre nublado, encobrindo o sol, o que faz a temperatura cair um pouco. Os rios enchem, alagam as margens e fertilizam a terra. A água da chuva purifica e fertiliza a terra, assim como purifica e fertiliza nossa vida. Os antepassados são mais uma vez lembrados, suas almas e memórias honradas e os laços entre eles e nós são fortalecidos. Uma reflexão é feita sobre o ano que termina. Os ganhos, as perdas, as alegrias e tristezas, as lições aprendidas e os bons momentos vividos. Pede-se aos Deuses que as tristezas sejam levadas embora, que o coração e a mente sejam purificados, e que as alegrias se multipliquem no próximo ano.

Celebrando meu solstício de inverno:

Acordei nessa manhã de solstício de inverno, na cidade de Rio Branco/AC (onde estou passando minhas férias de fim de ano) o céu estava (e ainda está) nublado, havia chovido de madrugada ou talvez de manhã cedo, mas uma chuva fina ainda caia. O canto dos pássaros ia aos poucos me despertando para o dia. Uma serenidade florescia em minha alma... Depois de tomar o café, ouvi músicas do grupo Omnia e Luar na Lubre, e isso para mim, por si só já é um ritual de inspiração. 
Observava o céu e ao mesmo tempo em que meus olhos navegavam nas formas das nuvens e no voo dos pássaros, pensava sobre o meu ano de 2011. O que vivi, o que senti, o que não quero mais em minha vida, e o que quero que se perpetue e fortaleça.
Acendi um incenso de alecrim, fiz uma oração e caminhei pela casa com o incenso, imaginando e pedindo por purificação, luz, harmonia, prosperidade e alegrias. Deixei o incenso terminar de queimar na estante da sala e brinquei um pouco com a fumaça que saia do incenso... A música que tocava embalava meu corpo, meus braços dançavam levemente e eu caminhava pelo espaço. Isso não demorou muito. Fui para a varanda observar novamente o céu. As nuvens falavam comigo... Nelas eu vi dois animais, que lembravam lobos, cachorros ou talvez onças... Estavam um de frente para o outro, suas patas dianteiras se tocavam, pareciam estar brigando, ou talvez se unindo... Vaguei minha mente por outras nuvens no céu e observei os pássaros dançando no ar. Ideias surgiam em minha cabeça, intuições, reflexões. Pensei em meus antepassados, minha amada avó que viajou ao Outro Mundo há dois anos. Desejei que suas almas estejam em paz e sua força continue nos guiando. Pedi aos Deuses por proteção a minha família, ao meu sobrinho recém-nascido nesse mundo, aos amigos e ao meu amor. Essa prece não se deu exatamente em palavras, mas em pensamentos, sensações...
Aos poucos fui saindo desse estado de profunda introspecção, mas ainda sinto-me conectada aos Deuses e a Natureza... Enquanto escrevia esse texto intuições vinham a minha mente, sinais surgiam em minha frente. Um bem-te-vi, uma abelha, uma brisa...
E assim acredito que será até o fim do dia, e espero que por toda a minha vida.

Os druidas, druidesas e pagãos celtas de ontem e hoje celebram os festivais do sol e da lua, solstícios e equinócios. Não sabemos como eram celebrados antigamente pelos celtas, e nem pretendemos (pelo menos não eu) celebrar exatamente como eram celebrados os ritos, os sacrifícios, enfim. Acredito que hoje os rituais e celebrações druídicas (em grupo e individualmente) mesmo não sendo realizadas exatamente como há anos atrás, seguem a essência celta. E a essência transcende a forma.
Penso também que celebramos os rituais e festivais não para os Deuses, não por uma “obrigação” que temos para com eles ou com o Druidismo. Celebramos os festivais para nós mesmos, para nos conectarmos mais com os Deuses e nossos antepassados. Ao honrar todos eles, recebemos em troca (de forma espontânea, e não induzida ou negociada) harmonia com os Deuses, a natureza e com nós mesmos. Ao celebrarmos os ritos e festivais sagrados nos harmonizamos mais com a Terra, nos sentimos curados, protegidos e abençoados. E não é necessário realizar um ritual grande e complexo. Uma simples, mas profunda meditação, acompanhada de orações, música, dança e/ou incensos já são suficientes.
O importante é estar conectado aos ciclos da natureza, à estação que se vive e ter consciência do que ela representa em sua vida.

16 de dezembro de 2011

Espiritualidade Feminina no Caminho Druídico


“A voz da mulher é tão sagrada como a terra”

(Aniceto Xavante).

Sabemos por meio dos registros de romanos e gregos que as mulheres celtas gozavam de uma considerável liberdade (social, religiosa, sexual...) se comparadas às mulheres romanas, por exemplo. Além desses registros, a mitologia celta também nos deixa indícios do poder e atuação da mulher na sociedade celta e em seu imaginário. Exemplos de coragem, honra e prestígio feminino podem ser encontrados nas histórias factuais ou míticas da rainha Cartimandua (dos Brigantes), a rainha Boudicca (dos Iceni), Maeve, Morrigan, Macha, Morgan Le Fay, entre outras mulheres e deusas. Sem falar no poder da soberania da terra que é relacionado diretamente a certas mulheres/deusas portadoras desse poder que o entregam somente aos homens justos e dignos destinados a serem reis.

No entanto, ainda se sabe pouco sobre as mulheres celtas e, principalmente, a mulher no druidismo antigo. Ainda se discute hoje em dia se existiram de fato druidesas, ou sacerdotisas celtas. Muitos afirmam que eram raras ou que não poderiam ser consideradas druidesas, e sim magas, sábias e profetizas. Outros afirmam que elas existiram sim, e mesmo não recebendo a devida atenção e cuidado de registro pelos observadores romanos e gregos e os monges do cristianismo medieval, elas não podem ser ignoradas. Eu prefiro acreditar nesse segundo pensamento, que se baseia em muitos argumentos históricos e mitológicos, mas para não ficar um texto muito longo não os abordarei aqui.

Minha intenção neste texto não é defender a existência de druidesas ou sacerdotisas nas tribos celtas antigas apresentando provas e discutindo sobre elas. Até mesmo porque já tem certa quantidade de textos e artigos disponíveis em livros e na internet sobre essa questão (Jean Markale, por exemplo, escreveu alguns textos sobre isso). Quero apenas escrever alguns pensamentos que tenho sobre a mulher que segue o druidismo hoje e como a espiritualidade feminina pode contribuir para as suas práticas, crenças e vivências.

Uma coisa que me intriga muito é a falta de registros sobre a questão da menstruação entre os celtas. Eu me pergunto: como eles pensavam esse momento tão feminino? Que ideias, tabus e preceitos rondavam o ciclo menstrual da mulher? E como a mulher se pensava nesse período? Diversas culturas apresentam um conjunto de ideias, positivas e negativas, de poder e (im)pureza, de cura e doença, relacionadas ao sangue menstrual. Monika Von Koss, em “Rubra Força”, e Mary Douglas, em “Pureza e Perigo”, analisam diversos contextos culturais onde os tabus do sangue estão presentes. Mas sobre essa questão, os registros clássicos e medievais sobre os celtas não nos dizem nada, ou ao menos ainda não foi descoberta ou traduzida tal informação. Enfim, essa é uma lacuna que a história dos celtas nos deixou.

É nesse ponto que acho muito interessante o que a espiritualidade feminina tem a nos oferecer. Não estou me referindo especificamente às religiões modernas da Deusa ou a bruxaria, mesmo que a espiritualidade feminina perpasse essas vertentes, ela na verdade as transcende.

A consciência feminina e muitos dos aspectos daquilo que vem a ser chamado de espiritualidade feminina ou ainda ecofeminismo perpassam diversas religiões hoje. Mulheres cada vez mais tomam consciência sobre seu corpo, sua sacralidade e ciclos. Cada vez mais se faz a reflexão e crítica sobre a posição e sujeição da mulher nas sociedades, e muitas vezes essa reflexão parte de dentro da própria cultura. A teologia feminista do cristianismo está crescendo e ganhando voz e espaço dentro desse âmbito. Por isso e outras coisas é que eu acredito ser muito válida tal consciência feminina para a sociedade como um todo e para nós, mulheres que seguem ou dedicam-se ao druidismo.

Uma das ideias que mais acho interessante, e que talvez seja a central, dentro do movimento da espiritualidade feminina está relacionada aos ciclos naturais da mulher, que abrange desde o ciclo menstrual, gravidez, menopausa e o puerpério. Cada um desses ciclos tem seu simbolismo, seus aspectos físicos, subjetivos e os aprendizados para a vida da mulher. Momentos marcados pela fertilidade, introspecção, intuições, desejos, expansão, recolhimento e sabedoria. Cada mulher percebe e sente seus ciclos de uma determinada forma. E cada ciclo possui sua lição, poder e renovação para a vida da mulher.

A menstruação, que ainda é mal vista em nossa sociedade, encarada por algumas pessoas como algo impuro, sujo, perigoso e incômodo, passa a ser considerada - sob a visão de uma espiritualidade feminina - como um momento extremamente sagrado para a mulher e quem a rodeia. Nada mais feminino do que menstruar. Nada mais natural do que sangrar todos os meses, seguindo o ritmo da lua, que rege as marés, as plantações, as águas do mundo todo, e inclusive dos seres humanos, afinal nosso corpo é 70% água.
A palavra menstruação pode ser interpretada como “medida da lua” ou “tempo da lua”, já que a raiz “mens” quer dizer medida (de tempo), e o ciclo menstrual é indubitavelmente influenciado pela Lua. Os termos “lua vermelha” e “sob a influência da lua” costumam ser usados por muitas mulheres para dizerem que estão menstruadas.

Com o sangue que escorre fora de seu ventre, acredita-se que vai embora junto tudo o que precisa “morrer” na vida subjetiva e objetiva daquela mulher. Mágoas, incertezas, problemas, hábitos ruins, comportamentos e sentimentos prejudiciais vão embora junto com o fluxo rubro. Para fortalecer esse propósito, algumas mulheres nos primeiros dias de menstruação fazem uma meditação, voltadas para o oeste, pedindo para que tudo o que for ruim e prejudicial à sua vida, as coisas chatas que lhe aconteceram naquele mês, enfim, vão embora e sejam transformadas em aprendizados, força e poder para si. O ato de entregar à terra um pouco do sangue simboliza essa ação. Nos dias seguintes, por volta do terceiro dia da menstruação, a mulher realiza outra meditação, voltada para o leste, pedindo pelas coisas boas e por objetivos que deseja alcançar para o próximo ciclo. Um banho com rosas brancas pode ser feito e danças sagradas podem ser realizadas, para simbolizar e fortalecer essa intenção.

Essa é uma prática que venho buscando realizar em meus dias de “lua vermelha”, com a finalidade de fortalecer em mim a consciência sagrada dos meus ciclos e uma comunicação melhor com meu corpo. Você pode incrementar mais esses ritos menstruais, acrescentando outros ou modificando esses. Oráculos podem ser consultados nesse período, inclusive o oráculo com o sangue. Observar que formas ou desenhos o sangue forma no seu absorvente e interpretá-los, derramar um pouco do sangue num recipiente com água e ter visões e intuições do passado, presente ou futuro, entre outras maneiras, que você mesma pode criar. Basta ouvir sua intuição e perceber o que seus sonhos lhe dizem.

Imagino que algumas pessoas devem ter lido esse texto com um certo nojo ou incômodo. Espero sinceramente que não. Mas se sim, talvez seja hora de repensar os valores e ideias sobre a menstruação, a mulher e o corpo (feminino e masculino, também). Quem lhe inculcou essas ideias, afinal? Até que ponto elas prejudicam sua relação com seu corpo, sua sexualidade e sua espiritualidade?

Para aqueles e aquelas que leram minhas palavras e gostaram, já fico enormemente satisfeita. O propósito principal deste texto era compartilhar meus pensamentos e ideias sobre um assunto tão delicado e ao mesmo tempo tão forte para nós mulheres. Espero que minhas palavras tenham tocado seu coração e ventre, e despertado em você as vozes ancestrais da Mulher Sábia.

Que seu sangue seja honrado, que seu corpo seja curado, que sua alma feminina floresça e seu poder enfim se fortaleça. Assim seja!


Obs: Texto publicado também no Templo de Avalon.

Druidismo na Amazônia


Foto de Adriano Cavalcante. Paisagem em Soure (Ilha do Marajó-PA).


Um dos princípios fundamentais do Druidismo é honrar nossas Três Famílias de Ancestrais, que são os Ancestrais da Terra (povos nativos de sua região ou país e espíritos da natureza), Ancestrais de Sangue (nossos antepassados) e Ancestrais Divinos (os Deuses e Deusas Celtas).

Contextualizando para a Amazônia, onde nasci e resido (no Pará), os Ancestrais da Terra seriam os povos indígenas que habitaram e habitam a região, como o povo Tupinambá, Mundurucu, Aruã, Sateré-Mawé, Mawés e tantos outros (alguns já nem mais existem nesse mundo...); e os espíritos da natureza, que são Iara, Mãe do mato, Mãe do rio, Cobra Grande, Boto e uma infinidade de seres que guardam a mata e o rio chamados de encantados e caruanas. Nem todos esses seres são amigáveis, vale lembrar. Por isso o cuidado e o respeito serem extremamente necessários ao adentrarmos em um local, como matas e proximidade de igarapés e mangues, considerados locais onde eles habitam ou portais para o seu mundo (chamado de Fundo ou Encante).
Isso não é diferente nas culturas celtas, em que nem todas as ‘fadas’ e seres que habitam os Sídhe são amigáveis com os humanos. Alguns são indiferentes e outros podem ser mesmo hostis. Aqui em minha região, costuma-se dizer que um encantado pode malinar (fazer mal) uma pessoa sem nenhum motivo aparente, apenas por vontade. Às vezes o motivo é um desrespeito com o local onde eles habitam (sujar, por exemplo), caçar demasiadamente um tipo de animal ou passar em horas impróprias ou mágicas perto do rio ou mata, como ao meio-dia, às 15:00 h e 18:00 h.

Para algumas pessoas isso não passa de crença ou superstição do povo caboclo ou ribeirinho. Mas a verdade é que isso faz parte de todo um modo de vida, de pensar e relacionar com o meio a sua volta dessas populações. Muitas pessoas não conhecem ou sequer valorizam a cultura do local onde vivem. Observo com pesar muitos indivíduos que nasceram e moram na região amazônica, ou no Brasil, e não conhecem ou não dão devido valor a sua história, sua cultura. Pessoas que não gostam de sua terra, não gostam de viver no Brasil, na Amazônia, ou de serem brasileiros ou amazônidas. E como não gostam, não sentem vontade de lutar para melhorar a realidade de sua vida e sua comunidade. Isso é resultado, de certa forma, de todo um processo de colonização e história de uma sociedade que nos fizeram pensar que o Brasil e sua população não possuem valor e estão aí para serem explorados. Explorar a terra, os rios, os animais, as pessoas...

Uma pessoa que segue o Druidismo jamais deve pensar dessa forma. Algumas atitudes devem ser cultivadas entre aqueles que procuram estudar e viver o Druidismo, penso que algumas delas sejam as seguintes.
Primeiro de tudo, considerar sua terra como sagrada ou no mínimo merecedora de reverência e respeito, assim como todo o planeta. Devemos entender que o Brasil, a Amazônia, enfim, são espaços sagrados, tão quanto é a Irlanda, a Escócia e as terras célticas.

Conheça a história e a cultura de seu país e região. Ao conhecermos nosso passado, entendemos o presente e podemos mudar o futuro. Você não precisa ser um revolucionário ou militante político se não quiser. Podemos mudar o futuro de nossa comunidade ou região trabalhando a conscientização dentro de casa, do ambiente de trabalho e entre os amigos. Fazer as pessoas ao nosso redor conhecerem e refletirem sobre sua realidade já é muita coisa, mesmo que não pareça.
Conheça a cultura, a música e dança folclórica de sua região e país. Você não precisa sair dançando o samba, o frevo ou carimbó, se não quiser. Mas entender apenas que essas formas de arte são maravilhosas, falam por si, falam da história, cultura e imaginário de um povo.
Conheça um pouco sobre as plantas da região, suas propriedades medicinais e místicas. Temos na Amazônia e no Brasil como um todo uma diversidade rica e ainda pouco conhecida de ervas, plantas e árvores, cada uma com sua essência e poder.
Saiba sobre os animais comuns da natureza a sua volta, observe sua beleza, seu canto, seu movimento, suas cores e hábitos. Os animais são mensageiros dos deuses e também nossos irmãos.

Tenha a consciência de que uma árvore, um rio, uma pedra ou inseto que seja possui vida. O povo do interior conta que alguns encantados tomam a forma de animais, e não se engane em pensar que todos eles são amigos. Mas em todo caso, tenha respeito, sinta respeito e humildade com esse ser e sua morada, e nenhum mal ele poderá lhe fazer.
Não é muito pedir para que você acredite em botos e mães d’água. Se você acredita em fadas e leprechauns da Irlanda, porque não crer no povo encantado da Amazônia ou do Brasil? (lembrando da fala do amigo João Uberti em uma palestra no II Encontro Brasileiro de Druidismo). Importante apenas ter em mente que um não equivale ao outro. Quero dizer, o boto não é a selkie, curupira não é o Homem Verde e a matinta não é a Morrigan. As semelhanças entre eles pode até ser óbvia, mas há algumas características marcantes de cada um que não podemos ignorar, pois são seres relacionados a certos locais e suas personalidades chegam a ser bem diferentes.

Alguns seres encantados da Amazônia:

Iara: palavra que quer dizer “senhora da água” ou “sobre a água”. Espírito feminino que mora e protege um rio ou igarapé. Se sentir que seu lugar está sendo desrespeitado por algum invasor que entra sem pedir licença, pode malinar essa pessoa provocando uma doença ou levando-a para o fundo. Também são chamadas de mães d’água e podem assumir a aparência de alguém conhecido para atrair a pessoa para o fundo da água.


Mãe do Mato: Encantado que protege as matas fechadas, árvores e animais que ali circulam. Pode mundiar (malinar) com caçadores que matam demais um tipo de animal ou pessoas que sujam o local ou fazem muito barulho enquanto andam na mata. Costuma aparecer em forma de sombra ou como um animal (geralmente um veado) para a pessoa.

Boto: Encantado que assume a forma de um homem bonito entre os humanos para seduzir moças em período de menstruação. Dizem que ele é atraído pelo sangue menstrual. As moças que se relacionam durante certo tempo com os botos podem ou morrer ou engravidar deles, dando a luz crianças normais ou botos (encantados), propriamente, e nesse caso eles devem ser deixados no rio para viverem no fundo. Há quem diga que os botos são na verdade marinheiros que aportam em cidades ribeirinhas e se aventuram com moças do local. Mas... vai saber. Infelizmente, existem pessoas insensíveis e covardes que matam esses animais para pegar apenas os olhos e o sexo, acreditando ser afrodisíaco. Isso é um crime e uma maldade terrível com esses animais...

Cobra-Grande: há vários tipos de cobras-grandes na Amazônia, algumas são princesas encantadas que se transformam em cobras como castigo por alguma transgressão. Outras são crianças que nascem com essa natureza (provavelmente filhas de encantados). Outras são caruanas importantes do fundo que auxiliam os pajés nos trabalhos de cura. E outras são cobras enormes que amedrontam pescadores e ameaçam afundar seus barcos. Reza a lenda que existe uma cobra-grande embaixo da cidade de Belém, com a cabeça localizada na Igreja matriz, e o rabo na Igreja em São Luís (Maranhão). O dia em que essa cobra se mexer, a cidade inteira vai para o fundo, e a cidade do fundo, com todos os encantados, vem à superfície. Acredito que exista algo mais substancial na lenda da cobra-grande, uma herança mítica ancestral quase esquecida. A tradição dos Mawés conta que a Grande Serpente, Mói wató Mãgkarú-sése, mãe de todas as cobras-grandes, teve que sacrificar seu corpo para ser transformado em nosso planeta (Urutópiag, de Yaguarê Yamã). Assim, do corpo da grande-cobra mãe surgiram as florestas, rios e muitos dos seres que conhecemos.

Matinta-Perera: seu nome nem é pronunciado em algumas cidades, de tão perigosa que é essa bruxa. Uma mulher (mas pode ser homem também) que tem o fardo de se transformar em matinta a noite para fazer o mal às pessoas ou testar sua coragem. Transforma-se em pássaro que anuncia a sua chegada com um assovio bem alto e agudo. Contam que se oferecer a ela café e tabaco, no dia seguinte ela vem buscar na sua casa. É um ser muito hostil e perigoso, de aparência feia que assusta até os ossos. Melhor nem mexer.

Há muitos outros seres que povoam o imaginário e a vida do povo na região, tão diversos quanto a própria Amazônia... mas fico por aqui, talvez em outro momento seja oportuno abordar mais coisas.


Obs.: essas informações são baseadas em livros que estudo sobre o folclore e a encantaria amazônica, e também em pesquisas de campo realizadas nos últimos anos em cidades do interior do Pará, além de casos e histórias contadas por conhecidos meus.

Obs.2: Texto publicado primeiramente no site do Templo de Avalon e blog do Nemeton Samaúma.

As funções dentro de um grupo druídico ou reconstrucionista celta


Nem todos os membros de um grupo druídico ou reconstrucionista celta (RC) sentem a aptidão ou vontade de serem de fato druidas, ou seja, sacerdotes ou sacerdotisas. Muitos têm profunda afinidade com a cultura celta e sua espiritualidade, mas não desejam ser druidas, vates ou bardos (os três caminhos ou estágios do sacerdócio druídico). Partindo desse ponto, muitos grupos RC's (re)criaram funções ou atribuições com as quais os membros se identificassem ou tivessem suas habilidades correspondentes a elas, baseando-se obviamente na cultura celta e na proposta de tribo ou clã.
Essa é, a propósito, uma diferença entre grupos druídicos (da época do 'renascimento druídico', no século XVIII) e grupos reconstrucionistas celtas, em que os primeiros preocupavam-se principalmente com a formação de sacerdotes (druidas). No Brasil, a maioria dos grupos, entre eles o nosso, apoiam-se numa abordagem reconstrucionista e aderem a essa visão, de diferentes funções entre seus membros, respeitando dessa forma a individualidade e habilidades de cada pessoa, e entendendo que cada indivíduo com sua respectiva função tem importância dentro de um Clan.
Segue uma breve explicação das principais funções ou atribuições dentro de um clã ou grupo druídico, assim como uma relação básica dos conhecimentos que cada uma deve comportar.

Sacerdócio:

Bardo ou Bardisa: deve estudar e conhecer a história e cultura dos povos celtas; mitologia e mitologia celta; poesia; música. Ser capaz de criar hinos aos deuses e deusas, poemas, canções, e saber tocar um ou mais instrumento musical.

Vate: conhecer as ervas e plantas da região, suas propriedades medicinais e místicas; saber jogar e interpretar oráculos; ser capaz de realizar jornadas espirituais, por meio de sonhos, viagens xamânicas etc. Saber curar. "Curar a si mesmo, curar a tribo, curar a Terra".

Druida ou Druidesa: espera-se que tenha a junção dos conhecimentos até então mencionados, além de noções sobre as leis célticas e brasileiras. É uma atribuição que resulta na verdade do tempo de sacerdócio, da dedicação ao grupo e, sobretudo, a sabedoria apresentada por essa pessoa.

Outras funções em um Clan:

Guerreiro(a): deve ter conhecimento sobre artes marciais; saber usar no momento certo a raiva (ou "furor da batalha"); entre as 9 virtudes, deve cultivar em especial a justiça e a coragem. Sua função principal é proteger a tribo dos "forasteiros" (pessoas, energias e tudo que possa ser hostil a paz do grupo e suas atividades) e lutar a favor de causas ecológicas e sociais.

Artesão: deve ter habilidade com as diversas artes, pintura, desenho, artesanato, enfim. Fornece material que sustenta as ações e a vida na tribo.

Devoto(a): é aquela pessoa que não quer necessariamente seguir o sacerdócio e nem sente muita afinidade com as outras funções, mas é devota dos Deuses e Deusas celtas, dedica-se ao culto a eles e às práticas diárias espirituais (preces, meditação etc.). 

Iniciante: É a pessoa que se encontra na primeira etapa de estudos e vivências do grupo, passando por um determinado tempo (que varia de um grupo para outro) de estudos e participação em ritos. Após esse tempo a pessoa pode decidir ou demonstrar, por suas habilidades e vocação, qual função deseja desenvolver.

Observador: é aquela pessoa que sente interesse em conhecer a cultura e espiritualidade celta e participa vez ou outra das atividades do grupo, podendo inclusive participar efetivamente dele caso queira se aprofundar.


O treinamento ou direcionamento de estudos para cada função pode durar 6 meses ou mais, dependendo da quantidade e complexidade dos assuntos a serem estudados. A forma utilizada é geralmente de aulas, rodas de conversas, meditações e vivências práticas (de artesanato, pintura, música, por exemplo). O aprendizado, contudo, é algo que se estende para a vida toda do indivíduo e não termina somente nesse direcionamento de estudos. É possível que uma pessoa sinta afinidade e queira conhecer várias atribuições, ser guerreira e bardo, por exemplo. E isso é perfeitamente possível, e ótimo até. Mas uma dessas funções provavelmente será a que ela desempenha e se sente melhor, e essa será considerada a sua atribuição principal dentro do grupo ou clan.
Vale ressaltar que há conhecimentos e ensinamentos da espiritualidade celta que são presentes em todas as funções, como as Nove Virtudes, a Awen/Imbas, por exemplo. Os mencionados acima seriam os específicos para cada função.
Importante esclarecer que todas essas funções são importantes e essenciais dentro de uma tribo, todos devem participar das atividades e rituais, não havendo uma hierarquia absoluta entre as funções. Mas devemos considerar que aquele que tem mais tempo, dedicação e conhecimento da tradição merece reconhecimento no grupo. Todos, porém, recém chegados ou antigos, devem ser respeitados.

Sobre Celtas e Druidas

Texto originalmente postado no blog do Nemeton Samaúma, e que transcrevo para cá também.

OS CELTAS 

Os celtas falavam línguas de origem indo-europeia, cujas variações hoje são o irlandês, o gaélico escocês, o córnico, o galês e o bretão – portanto, os celtas eram de origem indo-europeia, assim como também o são os povos germânicos, eslavos, gregos, romanos e indianos. Uma análise de evidências arqueológicas mostra a difusão de um povo nômade através da Europa, que se espalhou tanto em direção ao ocidente quanto ao oriente, e a medida que se estabeleciam e se mesclavam com populações locais pré-históricas, que remontam ao paleolítico, deram origem a diversos povos da antiguidade. 
Estudos indicam que os Indo-Europeus podem ter introduzido no continente tecnologias de construção de fortalezas, criação de gado, bem como uso de veículos com rodas para uso bélico. Além disso, tinham uma estrutura social mais definida, dividida entre um povo cultivador, uma classe de sábios e eruditos, e uma elite guerreira. 

Território ocupado pelas tribos celtas. 

Os celtas, além de herdarem a cultura linguística indo-europeia, também herdaram alguns costumes sociais e valores espirituais, como: 

- Sociedade relativamente patriarcal (embora, não seja errado também afirmar que era relativamente matriarcal, já que os direitos de mulheres e homens eram em muitos aspectos iguais, e a participação das mulheres na sociedade era mais marcante se comparada a sociedade greco-romana, por exemplo). 
- “tripartida”, de acordo com o estudioso Dúmezil: o povo ‘comum’, composto por trabalhadores, pastores, agricultores; os eruditos, que seriam os sacerdotes, adivinhos, curandeiros, e demais que possuíam o “ouvido dos Deuses”, e em alguns casos, artesãos específicos, como ferreiros; e a nobreza, que seria formada por uma elite, inicialmente guerreira. Não havia uma hierarquia absoluta entre esses grupos, pois entende-se que todos são importantes para o funcionamento e harmonia da comunidade. 
- Religião politeísta e animista (onde o sagrado estava presente nos fenômenos naturais, ou seja, em rios, árvores, colinas, animais). 

A primeira etapa do desenvolvimento da cultura celta é conhecida como Hallstatt e é identificada com o período que vai de 700 a 450 antes da era cristã (a.e.c.), mas variações dos idiomas celtas já eram falados pela Europa séculos antes.Os paleo-linguistas apontam para o vale do rio Danúbio, na Europa Central, como o berço onde surge o idioma celta. Os vestígios arqueológicos da região mostram que, nessa área, desenvolveu-se a cultura Hallstatt, caracterizada por fortificações em colinas, sepultamentos ricamente elaborados (alguns com carruagens inteiras) e uma arte singular. Nessa área fica a vila austríaca de Hallstatt onde, em 1846, Georg Ramsauer descobriu um cemitério da Idade do Ferro. As escavações revelaram mais de mil sepulturas com objetos – espadas, escudos, lanças, cerâmica – de formas características, identificadas com a cultura celta. Mais tarde, em 1857, uma seca no lago Neuchatel, na Suíça revelou uma nova fase do desenvolvimento da cultura celta, que recebeu o nome da vila às margens do lago: La Tène, que corresponde ao período de 450 a 50 anos a.e.c. 
Os celtas promoveram incursões regulares às terras circunvizinhas, culminando com a expansão dos territórios por eles povoados. Partindo de suas terras na Europa Central, os celtas estabeleceram-se nas Ilhas Britânicas (700 a.e.c.), na Península Ibérica (600 a.e.c.), no norte da Itália (400 a.e.c.), saquearam Roma (390 a.e.c.), cruzaram os Cárpatos (310 a.e.c.), saquearam Delfos na Grécia (279 a.e.c.), fundaram os reinos celtas da Galácia na Ásia Menor e de Tylis nas margens do Mar Negro e quase se estabeleceram ao longo do Rio Don, na Ucrânia.

Os celtas mantiveram muitos contatos comerciais e culturais com gregos e romanos. Às vezes estabelecia-se uma relação pacífica entre esses povos, outras vezes a relação era conflituosa, e desencadeava comumente em guerras. As trocas culturais eram inevitáveis. Os celtas da Gália, por exemplo, absorveram muitos costumes mediterrâneos, como o uso da moeda, a construção de estruturas proto-urbanas (oppida), e a influência na própria arte. No entanto, aos poucos a relação entre celtas e romanos foi se tornando cada vez mais complicada. 
No extremo oeste da Europa, onde hoje é Portugal, vivia a tribo celta dos Lusitani, descrita pelos romanos: “nos confins da Europa, onde as terras beijam o mar, vive um povo selvagem que não se governa e não se deixa governar”. Em 139 a.e.c. os romanos assassinam Viriato, líder dos Lusitani, com a ajuda de traidores de seu próprio bando. A expansão de Roma, então, se fortalecia.

Anos depois, o sul da Gália é anexado a Roma tornando-se uma província romana. É aproximadamente nesse período que surgem a maioria dos registros de redatores clássicos sobre a cultura celta, como o do grego-sírio Poseidonius (que infelizmente, hoje só restam alguns trechos citados por outros autores, pois o texto integral se perdeu), Diodoro da Sicília, Estrabão, Ateneu, Julio César e outros. Esses registros normalmente foram escritos em épocas de guerra com os Celtas da Gália ou Grã-Bretanha, e em parte são tendenciosos e reprimem alguns aspectos de sua cultura. Mas ainda assim, são importantes, pois nem sempre são realmente detrativos e foram escritos por sociedades que tinham mentalidades, ao menos em parte, semelhantes à dos Celtas, ou pelo menos muito mais próximas do que a dos cristãos medievais. 

Em 55, Julio César finaliza a conquista da Gália após a batalha de Alésia, quando o líder gaulês Vercingetorix depõe suas armas. Vercingetorix é até hoje lembrado pelos franceses e estudiosos da cultura celta como um herói, por ter conseguido um feito grandioso: unir tribos celtas diferentes sob seu comando e quase expulsar as hostes romanas do território gaulês. A autoridade inter-tribal era uma característica da habilidade e função dos druidas, e há indícios que o próprio Vercingetorix fosse um druida. 

Os druidas tinham grande respeito e poder na sociedade celta, e é óbvio que as conquistas das terras celtas da Gália e da Bretanha só seriam possíveis quando os romanos se livrassem dos druidas. Julio César afirma que os druidas da Gália dirigiam-se à Bretanha para lá serem instruídos, e é por isso que, após a conquista da Gália, os romanos se dirigem com força para as terras britânicas. 

Mesmo resistindo, os celtas britânicos são derrotados quando, em 51, o líder Caratacus é capturado. Menos de dez anos depois, os romanos promovem um terrível massacre da Ilha de Môn (Anglesey, País de Gales), um centro druídico onde a crueldade dos legionários romanos é reprovada até pelo historiador Tácito. Em Anglesey, mulheres, crianças e idosos são massacrados pelas legiões de Roma. 

A destruição desse centro druídico, somada a morte de seu marido e a violência física e sexual sofrida por Boudicca e suas filhas, tem relação direta com a revolta liderada por ela, a rainha dos Iceni, no ano 60. Ela uniu sob seu comando tribos diferentes com o intuito de expulsar os romanos da ilha da Grã-Bretanha, e ela quase consegue, mas sua resistência também se mostra insuficiente para deter as legiões, e diante da derrota iminente, Boudicca comete suicídio, preferindo tirar a própria vida a ser capturada e humilhada mais uma vez pelos romanos. 
Aqui cessam os registros clássicos sobre os celtas. As terras da Gália, da Grã-Bretanha, da Galácia e da Ibéria, não eram mais celtas, mas romanas; as tribos dos Boii, dos Sequani, dos Belgae, dos Parisi e outras, não eram mais completamente livres, pois haviam sido romanizadas e subjugadas. À exceção da Irlanda, Escócia e País de Gales, que não foram conquistadas por Roma, e conseguiram, portanto, preservar elementos de sua cultura. 
No entanto, mais tarde o cristianismo, a partir do século V, representou a nova ameaça às remanescentes tribos celtas, exercendo uma forte cristianização e sufocando a religiosidade antiga. Contudo, os monges copistas exerceram um papel fundamental na história dos celtas, registrando alguns mitos e contos da tradição oral para a escrita. A influência cristã nesses escritos é clara, mas ainda assim foi impossível ocultar elementos do “paganismo” celta e sem eles saberíamos muito pouco sobre sua mitologia. 

O Renascimento Druídico

E o que parecia morto, estava, na verdade, adormecido, mas de alguma forma já se manifestava no folclore, nos costumes e festas populares. Foi, então, que no século XVIII surgiu um movimento de “resgate” da cultura celta, iniciado na Inglaterra, com o surgimento da primeira ordem “druídica”, a Druid Order, criada por John Toland e John Aubrey, ambos católicos com interesse e estudos no ocultismo. 

A partir de então a “celtomania pagã” (como denomina Marc Orens) faz surgir uma série de novas ordens druídicas, que se diziam antigas, de ancestralidade verídica, mas que na realidade, todas estavam profundamente relacionadas com a maçonaria, o ocultismo e o cristianismo. Por outro lado, as línguas célticas que se encontravam extintas ou quase extintas começaram a renascer e a serem estudadas e faladas, como ocorreu na Cornualha, no século XX. 

Somente a partir do século XIX, com o nascimento da arqueologia, e século XX, com o avanço dos estudos históricos, linguísticos, antropológicos, o Neo-Druidismo e o Reconstrucionismo Celta (RC) começam a se basear fortemente nos estudos acadêmicos, como forma de se desvencilhar da influência do ocultismo e cristianismo e resgatar as características mais próximas possíveis da antiga cultura celta. O RC é um movimento cultural e religioso, consolidado nos anos 80 e que teve como um dos idealizadores Erynn Rowan Laurie, busca “reconstituir, em um contexto cultural Céltico moderno, os aspectos das antigas religiões Celtas que se perderam ou foram suprimidos pelo Cristianismo” (CR FAQ Brasil). 

No Brasil, não é possível estabelecer quando exatamente o Druidismo ou Reconstrucionismo Celta chegou ao país, mas imaginamos que já entre os anos 80 e 90 já existiam adeptos desses movimentos. Para algumas pessoas, entre os anos 2000 e 2002 ocorreu um marco para o movimento no país, através da presença de Robert Kaucher, um norte-americano considerado um ícone do Reconstrucionismo Celta, que pretendia organizar a Ordem Druídica do Brasil (ODB). Ele ganhou notoriedade e respeito por seu conhecimento e proposta séria, porém, a ordem não teve muito sucesso. Da ODB surgiram vários grupos, alguns ainda atuantes e outros não mais. No sul e sudeste do Brasil é onde se encontram a maioria dos grupos druídicos, como a Ordem Walonom, o Ramo de Carvalho, Caer Tabebuya, Caer Piratininga, Gergóvia, e entre outros; e também de grupos musicais, como Keltoi, Terra Celta, Leannan Shee, Braia. No nordeste, e especificamente na Paraíba, o druidismo se consolida através dos Brigaecoi. E no norte, existe o Nemeton Samaúma. 

Os celtistas e druidistas brasileiros geralmente procuram observar aspectos regionalistas em suas práticas, ou seja, procuram valorizar e honrar a cultura e história dos povos locais, indígenas, afro-brasileiros, além de, é claro, honrar a cultura e história dos celtas antigos. 

Cultura e Religião Celta


Depois de seu surgimento na Europa Oriental por volta do segundo milênio a.e.c., os celtas se expandiram pelo continente europeu em sucessivas ondas migratórias, chegando à Europa Ocidental entre os séculos VII e VI a.e.c. Quando as primeiras tribos celtas chegam às regiões hoje conhecidas como França, Ilhas Britânicas e Península Ibérica, aquelas áreas já eram ocupadas por culturas conhecidas como povos neolíticos, sobre os quais sabemos muito pouco. O que sabemos através dos vestígios arqueológicos é que sua cultura baseava-se na agricultura e na astronomia. Eles tinham conhecimentos precisos sobre a movimentação dos astros e corpos celestes, permitindo a construção de magníficas e misteriosas estruturas megalíticas como Newgrange na Irlanda, Carnac na França, Avebury e Stonehenge na Inglaterra. 

A chegada dos celtas àquela região pôs em contato essas duas culturas e, do contato entre elas, surge uma espiritualidade que funde os elementos indo-europeus trazidos pelos celtas e as características dos povos autóctones da região. O resultado dessa fusão deu origem a espiritualidade celta e o que chamamos hoje de druidismo. 

O politeísmo, a crença de que tudo tinha “alma” (animismo), a sacralidade da natureza, inclusive de animais, a crença na imortalidade da alma e nos mundos míticos e feéricos do Outro Mundo, são alguns aspectos da religiosidade celta. 

O desenvolvimento do druidismo permanece pouco conhecido desde suas origens até os primeiros contatos dos celtas com a cultura clássica, já que a escrita não era utilizada pelos celtas para registrar suas crenças; é somente a partir dos registros de gregos e romanos que os celtas e sua cultura entram de fato para a história oficial. Os druidas (de druid, druir, druwid) palavra que se traduz hoje como “o que tem a sabedoria do carvalho” (uma árvore sagrada para os celtas), eram os sábios da sociedade, e além de terem funções religiosas e sacerdotais, eram também juízes, poetas, músicos, conselheiros e curandeiros. 

Diodoro da Sicília escreve sobre os druidas gauleses que: 
Os filósofos, como nós os chamamos, e os homens versados em assuntos religiosos são especialmente honrados entre os gauleses, que os chamam de druidas. Os gauleses também se valem de adivinhos, tendo-os na mais alta estima; esses homens preveem o futuro através do vôo ou do canto das aves e do sacrifício de animais sagrados, e toda a população lhes é obediente... é seu costume não praticar nenhum ritual sem um desses ‘filósofos’, pois as oferendas aos deuses devem ser feitas pelas mãos daqueles que conheçam a natureza do divino, e que falem, por assim dizer, a língua dos deuses. É também por intermédio desses homens que eles recebem suas bênçãos.
Escreveram sobre os druidas diversos redatores clássicos, como Pomponius Mela, que afirma que eles “são mestres de muitas artes”, e também César, observando que eles “costumam discutir os astros e seus movimentos, a grandiosidade do mundo e da terra e sobre a natureza das coisas”. Os próprios celtas não adotaram a escrita, raras vezes utilizavam o dialeto local para escrever coisas simples, como a demarcação de locais especiais, territorial ou funerário. Em algumas regiões, como na Irlanda, era utilizada uma escrita sagrada, Ogham, para inscrições em pedras, árvores e ossos, ao mesmo tempo em que era usada como oráculo. 

Qualquer indivíduo poderia se tornar um druida na sociedade celta, desde que se submetesse ao um treinamento longo e árduo, que durava em torno de 20 anos, nos centros druídicos existentes em alguns locais e ilhas na Bretanha e antiga Inglaterra. São conhecidos três tipos de sacerdotes, que são na verdade estágios do treinamento: bardo, vate e druida. O bardo é aquele que conhece os mitos, contos e leis célticas, ele deve conhecer a história de seu povo e saber contá-las, e também possuem conhecimento de música. O vate conhece os oráculos, técnicas de cura e meios de comunicação com os mundos espirituais. O druida, por sua vez, reúne as funções e conhecimentos do bardo e vate, realizam os rituais, os sacrifícios, aconselham o rei e a população, decidem sobre situações da tribo (questões de propriedade, divórcio, crimes), interpretam os presságios, interveem conflitos inter-tribais, etc. 

Da mesma forma como havia sacerdotes, também havia sacerdotisas na sociedade celta, embora não tenha se utilizado o termo “druidesa” em documentos históricos até antes do século 3, segundo Miranda Green, para denominá-las, é inegável a existência de mulheres sábias, curandeiras, magas e profetizas. 

Pintura representando druidas e druidesas em um rito de retirada do musgo do carvalho. 


A seguir, algumas das principais crenças e características do Druidismo: 


DEUSES E DEUSAS: Praticamente cada tribo possuía um panteão próprio, embora algumas divindades possam ser consideradas “pan-célticas”, pois eram reverenciadas em diversas tribos, tendo apenas algumas variações em seus nomes e atributos; exemplo: Lugh Samildanach – Llew Llaw Giffes; Brigit – Brigantia – Bríg Ambue; Epona – Rigantona – Macha – Rhiannon; Manannan Mac Lir – Manawyddan. Entre as deidades celtas não há hierarquias ou conceitos de dominância como se encontra na mitologia grega. E nem possuem um único atributo, como "o deus da guerra" ou "a deusa do amor". Os deuses têm múltiplas faces, atributos e características. Não são apenas bons ou apenas maus. A idéia de dicotomia ou maniqueísmo de que estamos acostumados não é presente, e sim o equilíbrio de forças negativas com positivas. Os deuses podem ser num momento benevolentes e noutro cruéis, tal como a própria Natureza, forma máxima de expressão das divindades. Como uma chuva que cai sobre a Terra que pode ser uma benção quando os campos estão ressequidos ou uma desgraça quando causa enchentes e destruição. Os druidas e os celtas não adoram os deuses, procuram desenvolver com eles um relacionamento pessoal baseado em honra, amizade, reconhecimento e laços de hospitalidade, mesmo porque alguns deuses são os ancestrais, ou seja, nossa família. Assim era com os celtas em tempos antigos, e assim continua hoje entre os pagãos celtas modernos. 

Deusa gaulesa Epona. 

ANIMISMO: cada característica da natureza (um rio, uma montanha, um lago, uma floresta, a chuva, os ventos, o trovão, as estações do ano) possui, do ponto de vista druídico, um espírito próprio, uma energia vital por trás do elemento em questão, com a qual é possível estabelecer um diálogo, uma relação, um contato de espírito para espírito. 

NATUREZA SAGRADA: a ideia de animismo resulta na crença de que a natureza é viva e sagrada. As divindades celtas são os espíritos que habitam nosso mundo, dando-lhe forma e interagindo conosco. Diversas montanhas, florestas, nascentes e lagos das paisagens celtas refletem a mesma crença de que a paisagem é povoada por poderosos espíritos da natureza – em outras palavras, deuses e deusas. O fato de os druidas históricos não construírem templos, como os romanos, é explicado justamente por sua crença de que nenhuma estrutura erguida por mãos humanas é tão sagrada quanto a Natureza que nos rodeia. 

RODA DO ANO: As datas sagradas do druidismo estão associadas às estações do ano, cada qual com temáticas e mitos que promovem a compreensão dos ciclos da vida como um todo: nascimento, apogeu, declínio, morte e renascimento. Os principais rituais realizados no druidismo são: Samhain (fim do verão), que ocorre no hemisfério norte entre os dias 31 de outubro a 2 de novembro; Imbolc (primeiro sopro da primavera), 1º de fevereiro; Beltane (início do verão), 1º de maio; La Lunása (primeira colheita), 1º de agosto. Além desses também são celebrados os solstícios de verão (entre 21 e 24 de junho), de inverno (21 de dezembro), e equinócios de primavera (21 de março) e outono (21 de setembro).

O UNIVERSO: não há um registro histórico ou mitológico de uma cosmogênese, os mitos e lendas celtas não mencionam uma criação, um início do universo. Para alguns druidistas isso quer dizer que o universo não foi criado, mas que ele vem sendo criado através das eras, pelas ações transformadoras do tempo, da Terra e das criaturas, sobretudo nós. Esta visão é interessante, pois nos devolve a responsabilidade por nossos atos, individuais e coletivos. A ação individual é parte da ação global, e pelo pensamento céltico estamos todos interligados. Cada ser humano deve ter consciência de seus atos, das causas e consequências, das origens das coisas e pensamentos, das interconexões, e de que cada indivíduo tem um papel dentro do Universo. 

OS TRÊS MUNDOS: os celtas viam o mundo dividido por três níveis de realidade: um mundo superior, este mundo intermediário e um mundo inferior - todos interligados e entrelaçados como num ‘knotwork’ celta. Entende-se essa divisão também como Céu, Terra e Mar, os três reinos divinos; e Corpo-Mente-Espírito. Como a cultura celta e o druidismo prezam o equilíbrio e não o conflito entre os extremos, então, não existe conceitos como bem ou mal absolutos, e nem “Paraíso” ou “Inferno”. O que existe é a percepção do ‘mundo médio’ (o universo em que vivemos) e o Outro Mundo, o mundo sutil, espiritual, divino. 

O OUTRO MUNDO: seja na forma de ilhas a oeste das terras celtas, seja na forma das colinas ocas da paisagem britânica, o Outro Mundo Celta é sempre descrito como um local “paradisíaco”, habitado por deuses e deusas, heróis e heroínas, onde não há inverno nem tempestades e há fartura e alegria. O Outro Mundo é tanto perceptível de forma física quanto intuitiva; lagos, o mar, poços e rios são passagens para o Outro mundo, assim como fendas no solo, colinas, montanhas, florestas e árvores específicas. É possível também que uma passagem para o Outro Mundo possa ser construída, facilitada através de técnicas apropriadas, da mesma forma que pode ser obstruída. 

A ALMA CELTA: a alma de um indivíduo é a manifestação de uma consciência maior, que é o conjunto de todas as almas. Essa alma é indestrutível, assim como o espírito do universo. A crença de que a alma de um indivíduo pode ‘migrar’ para outra criatura após a morte, foi confundida com o conceito de reencarnação (bastante presente tanto na religião hindu como na espírita), que implica num constante processo evolutivo, e que um dia se encerra. Mas se o universo é infinito, ele não pode se encerrar definitivamente ou estagnar. Além do mais, a ideia de evolução pressupõe uma “hierarquia”, em que uma espécie é ‘superior’ a outra. Ao afirmar que um ser é superior a outro podemos cair no problema de dizer que uma raça é superior a outra. Essa ideia de reencarnação evolutiva ignora o fato de que, para o universo, um ser humano, uma planta e uma bactéria tem a mesma importância. Quando entendemos que os celtas acreditavam que a alma de um ser humano poderia renascer noutra criatura, reforça-se a percepção de que tudo na paisagem é sagrado, dotado de vida. 

ANCESTRALIDADES: estamos acostumados com o conceito de ancestralidade associado a “linhagem sanguínea”. Temos um pai e uma mãe – nossos ancestrais diretos – e também avós, bisavós, trisavós e assim por diante. Essa ancestralidade sanguínea determina quem somos fisicamente (a cor de nossos olhos, pele e cabelos, estatura etc.) e parte de quem somos psicologicamente. A eles todos devemos o simples fato de existirmos. Mas essa não é nossa única ancestralidade. Há também a ancestralidade local ou nativa, que se refere aos povos originários de nossa terra, região ou cidade. E há outra, tão importante quanto as outras, que determina o que cremos, nossos valores e filosofia, ou seja, determina a herança de nossa alma. A ancestralidade espiritual ou de alma, que não depende da ancestralidade sanguínea. Quando optamos por seguir uma determinada religião ou tradição espiritual, inevitavelmente ingressamos num caminho aberto por outros antes de nós. Para que sigamos esse caminho com segurança é essencial que conheçamos suas características, história, origens e transformações. 

AWEN / INSPIRAÇÃO: o conceito da Awen já foi traduzido como “espírito que flui” através de nós, êxtase poético, arrebatamento profético, enfim. Mas a palavra e o sentido que mais define a Awen (do galês, ou Imbas, do gaélico) é Inspiração. Inspirar é receber algo, introjetar, gerar, criar, conhecer... E posteriormente expirar, transformar em ação o que se aprendeu. Como o ar que inspiramos e enche nossos pulmões, a Awen nos toca, nos estimula e transforma, primeiro interior e individualmente, depois coletivamente. De dentro para fora. Do indivíduo para a comunidade. A Awen, portanto, é o espírito que flui através de nós, é o que inspira nossas ações. Quando reconhecemos a presença do espírito em tudo, é possível então o contato profundo entre cada um de nós e “o outro” – seja o outro uma pessoa, um animal, uma paisagem, um nascer do sol, um lugar, uma música ou nosso trabalho. 



SUGESTÃO DE ALGUNS LIVROS: 

BARROS, Maria Nazareth Alvim de. Uma Luz sobre Avallon. São Paulo: Mercuryo, 1994. 

BELLIGHAM, David. Mitología Celta: Dioses e Leyendas. Madrid: EdimatLibros, 1997. 

ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 

FUNARI, Pedro Paulo (org.). As Religiões que o Mundo Esqueceu. São Paulo: Contexto, 2009. 

KONDRATIEV, Alexei. The Apple Branch: A Path to Celtic Ritual. 1992. 

LAUNAY, Olivier. A Civilização dos Celtas. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1978. 

MACKENZIE, Donald Alexander. Wonder Tales from Scottish Myth and Legend. 1917. 

MAY, Pedro Pablo G. Os Mitos Celtas. São Paulo: Angra, 2002. 

Revista História Viva. Celtas. São Paulo: Duetto, maio 2004. 

SQUIRE, Charles. Mitos e Lendas Celtas. São Paulo: Nova Era 

ORENS, Marc. A Civilização dos Megálitos. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1980.